«Naquela tarde de Inverno, com sol e algum vento, as atenções dos adeptos do futebol estavam viradas para o estádio da Luz, onde se jogava o Benfica-Sporting. Um dérbi que iria entrar para a história por causa de um episódio insólito. Aos 54 minutos, Vítor Baptista, ao festejar com os colegas um golo (que iria ser o da vitória) perdeu o seu brinco e pôs árbitro e jogadores a esgravatar na relva à procura do adereço, que nunca apareceu.
Eusébio, tantas vezes aclamado pelos 80 mil adeptos que lotavam o estádio da Luz, já não jogava no Benfica. Aos 36 anos, continuava a ser uma estrela, mas agora no União de Tomar, da II Divisão. A 130 km de Lisboa, era aplaudido pelas 4 mil pessoas que enchiam o estádio 25 de Abril (era assim desde Dezembro de 1977, quando Eusébio e Simões ingressaram no clube) para assistir à partida com o Cartaxo. Sem o saber, também eles estavam a olhar para a história, pois Eusébio marcou aí os seus dois últimos golos em Portugal.
Nunca haverá outro King como ele!
Iria terminar a carreira na época 1979/80, no futebol indoor dos Estados Unidos. No total, obteve 733 golos em 745 jogos – alguns, como os do Mundial de 1966 ou do Benfica europeu, podem ser vistos nos cinemas, no documentário Eusébio, a história de uma lenda.
O último golo de Eusébio
Frente ao Cartaxo, o União de Tomar (4º classificado da II Divisão, Zona Centro, e ainda com ambições de subida, juntamente com Beira-Mar, Ac. Viseu e Est. Portalegre) entrou ao ataque e fez o 1-0 aos 14 minutos.
O médio Barrinha, na altura com 21 anos, lembra como foi: “Sofri falta, na zona frontal, aí a uns 30 metros da baliza, e a minha primeira reacção foi pegar na bola e ir entregá-la ao Eusébio. Eu também marcava livres, mas àquela distância tinha de ser para o seu pé-canhão. Ele rematou com força, na direcção do guarda-redes, que se encolheu, talvez pela potência do remate. Ainda esticou o braço, mas já não foi a tempo e a bola passou por cima dele. No fim, o Eusébio comentou: ‘Vieste-me dar a bola, até parece que estavas a adivinhar'”.
O 2-0 final iria ser conseguido no início da segunda parte, em mais um livre, desta vez perto da linha da área. Enquanto a equipa do Cartaxo organizava a barreira, Eusébio ajeitava a bola e conversava com três colegas: Mário Pinto, Simões e Faustino. “Perguntamos-lhe: ‘Então, Eusébio, é pra golo?’ E ele: ‘Vou metê-la naquela gaveta’. A bola sobrevoou a barreira, parecia que ia sair, mas depois baixou de repente e entrou”, conta o extremo esquerdo Mário Pinto, que então tinha apenas 18 anos.
“Tinha esse hábito de dizer onde é que ia por a bola nos livres”
Simões, companheiro de Eusébio no Benfica entre 1961 e 1975, explica que ele “tinha esse hábito de dizer onde é que ia por a bola nos livres”. “Ele gostava que eu ficasse ao pé da bola, para lhe dar um toque, nos livres indirectos, ou então só para confundir o adversário. Olhava para a barreira e dizia: ‘Está mal feita, está uma merda, a bola passa por ali’. Às vezes, num estádio com 80 ou 100 mil pessoas, só eu e o Eusébio é que sabíamos que ia ser golo. E depois de a bola entrar, eu pensava: ‘Olha o sacana, como é que ele faz isto’. Tinha sido mesmo como disse’’.
“Na verdade – continua Simões – vi-o fazer esses mesmos golos de livre durante os 15 anos em que jogámos juntos no Benfica, e depois quando estivemos nos EUA – ou ainda no Beira-Mar ou no União de Tomar. Fazia-o de duas maneiras: por cima da barreira, que era uma técnica de passe, porque meter a bola por cima da barreira era fazer um passe para a baliza; ou então chutava em força, e fazia-o com tanta potência que a bola entrava pelo lado do guarda-redes, que ficava sem tempo de reacção. A bola subia e depois ficava sempre à mesma altura, não fazia curva nem trivela. O Eusébio marcou golos em todas as equipas onde jogou. O golo era o seu ADN. Para ele, nenhum jogo fazia sentido sem o golo”.
Eusébio já tinha marcado outro golo no União de Tomar. Foi a 22 de Janeiro de 1978, na vitória (1-0) sobre o Peniche. “Eu é que fiz o passe, foi um cruzamento rasteiro, para a esquina da área, ele rematou de carrinho, com o pé direito, e a bola entrou junto ao poste mais distante”, conta Mário Pinto, que lembra os treinos passados com Eusébio a marcar livres. “Dizia-me: ‘Com força, tens de rematar sempre com o corpo inclinado para a frente. Se for em jeito, a bola tem de bater na parte de fora do dedo grande, que é para ganhar efeito e velocidade’. E o pipo da bola também tinha de estar sempre virado para nós”.
Simões integrou a equipa do União de Tomar em Outubro de 1977 e Eusébio chegaria no mês seguinte. “Estávamos nos EUA, mas lá a época só durava seis ou sete meses, por isso a ideia era jogar três ou quatro meses em Portugal, para manter a forma física. Não havia a expectativa de ir para aqui ou para ali, era conforme os convites que apareciam”, lembra António Simões, que em 1975/76 tinha jogado no Estoril – Eusébio actuou pelo Beira-Mar em 1976/77.
Barrinha lembra a chegada de Eusébio a Tomar, a 18 de Novembro: “Ele atrasou-se, e então o nosso treinador, o Vieirinha, decidiu começar o treino sem ele. Só que estava sempre a sair do relvado para ir à porta ver se via o Eusébio. Vinha dar umas indicações, deixava-nos a treinar e ia espreitar. A certa altura entrou disparado no relvado, aos pulos e aos gritos: ‘Chegou o rei!, Chegou o rei!’”
A contratação das duas estrelas teve também impacto no clube, que logo na primeira semana passou de 1500 para 1900 sócios. “O nosso estádio estava sempre bem composto, com 4 ou 5 mil pessoas, e quando jogávamos fora havia autênticas romarias”, nota Mário Pinto, que lembra uma história. “Uma vez, em Viseu, o Eusébio nem jogou, estava tocado, e quando estávamos a chegar ia connosco o Antoninho, um avançado preto. A multidão confundiu-o e começou toda: ‘Olha o Eusébio, vai ali o Eusébio. Eles queriam era ver o Eusébio”.
Eusébio treinava em Lisboa
Normalmente, Eusébio só fazia um treino em Tomar. “Vinha às quintas-feiras, no resto da semana treinava em Lisboa”, conta Barrinha. “Nesse dia chegávamos mais cedo, para conviver com ele, ouvir as suas histórias, ver como é que se equipava, como apertava as chuteiras. Era um sonho. Ficávamos ali extasiados a olhar para o monstro sagrado, como se isso nos ajudasse a sermos melhores jogadores”.
Eusébio já não jogava a ponta-de-lança. “É preciso ver que nas últimas épocas no Benfica ele já não era avançado”, nota Simões. “A linha da frente do Benfica era fantástica, com o Nené, o Vítor Baptista e o Artur Jorge ou o Jordão. Ele já não tinha a velocidade doutros tempos, tal como eu, aliás, e ficávamos no meio-campo. Era eu, ele e o Jaime Graça. O Eusébio tinha grande inteligência táctica e cultura colectiva, algo que nem todos os grandes avançados conseguiam, estou-me a lembrar por exemplo do Futre. O Eusébio tinha essa capacidade de ler o jogo, além de fazer passes soberbos a 25 ou 30 metros”.
Mário Pinto lembra-se de Eusébio a jogar mais como segundo avançado no União de Tomar. “O Florival é que ficava mais na frente. E o Simões jogava a médio esquerdo e eu a extremo”, aponta, recordando que fez algumas assistências para golo, sobretudo para Florival. “O Simões dizia-me: ‘A coisa mais difícil é conseguir chegar à linha. Quando chegas lá, cruzas e o teu papel está feito’. Agora vê-se jogadores a ir à linha e depois voltam para trás com a bola, não cruzam”.
A boa época em Tomar permitiu a Mário Pinto jogar pela selecção portuguesa de sub-21. No ano seguinte foi para o Juventude de Évora, que andou até ao fim a lutar pela subida à I Divisão. “Fui depois para o Amora, treinado pelo pai do Mourinho, a seguir para Setúbal e depois para o Rio Ave – fomos à final da Taça com o FC Porto. Estive também no Estoril, onde joguei com o Fernando Santos, com o Fidalgo e com o Reinaldo. Fiquei depois três anos no Barreirense, foi o sítio onde estive mais tempo, e voltei a Tomar, para acabar a carreira”.
No dia 14 de Março de 1978, Eusébio jogou no campo pelado do Marrazes, num jogo que terminou 0-0 – “foi uma das melhores partidas dele, no meio campo, até fazia carrinhos, parecia um miúdo”, lembra Mário Pinto. Eusébio seguiu depois para a África do Sul, onde ficou um mês, participando em jogos-exibição pelo Cape Town City, da Cidade do Cabo – a iniciativa, da Mobil Oil, permitiu-lhe receber 750 contos num mês, 12 vezes mais do que ganhava no União de Tomar.
Eusébio regressou a 21 de Abril e assistiu ao jogo amigável do União de Tomar com o Belenenses (derrota por 3-0), numa altura em que Simões ficara como treinador-jogador. “Espero continuar cá pelo menos mais um mês”, disse na altura Eusébio, que iria fazer ainda mais dois jogos pelo clube.
O primeiro aconteceu a 30 de Abril, com o Académico de Viseu (0-0). A despedida do União de Tomar (e dos relvados portugueses) aconteceu a 6 de Maio, em Portalegre (derrota por 2-0 frente ao Estrela). Depois de 12 jogos (e três golos) pelo União de Tomar, Eusébio seguiu para os EUA, para os New Jersey Americans, da II Divisão, onde foi receber 900 contos por dois meses.
Na época seguinte (1979-80), jogou no Buffalo Stallions, no futebol indoor. Fez apenas cinco jogos (e marcou um golo). “Era muito complicado para ele jogar na carpete, aquilo era muito duro e os joelhos, fustigados pelas operações, ressentiam-se”, adianta Simões.
O jogo em Portalegre foi num sábado à noite, lembra Barrinha, que fez aí uma grande exibição. “O treinador Fernando Peres foi lá ver um jogador, mas gostou de mim e convidou-me para ir para o Juventude de Évora, que ia lutar pela subida. Infelizmente acabámos por ir só à Liguilha, quem subiu foi o Rio Ave, treinado pelo pai do Mourinho. No ano seguinte o Peres levou-me para o U. Leiria – joguei lá com o Jorge Jesus. Depois estive quatro anos em Guimarães, treinado pelo Pedroto e pelo Artur Jorge, e a seguir no Vit. Setúbal”.
Barrinha lembra, a propósito da sua passagem pelo Vit. Setúbal, uma história curiosa: “Num jogo, contra o Sp. Covilhã, o Eusébio foi ao Bonfim com o Simões e o Toni, foram lá observar uns jogadores, e como já não nos víamos há algum tempo, depois do jogo ficaram à minha espera, para me ir cumprimentar. Estava lá eu com eles e aparece um jornalista, a fazer-me umas perguntas sobre o jogo. E eu: ‘Então estão aqui estes monstros sagrados do futebol português, e vocês vêm-me fazer perguntas sobre o Vitória de Setúbal-Covilhã? Eles fartaram-se de rir”.
A saída de Eusébio de Tomar apenas terá deixado satisfeito o roupeiro do clube, conforme brinca Simões. “As pessoas andavam sempre a pedir-nos camisolas, mais ao Eusébio, claro, e às vezes lá dávamos uma. O roupeiro ficava danado. Dizia: “Não dêem camisolas, que qualquer dia não há nenhuma para jogarem”.»
Fonte: revista Sábado “O último golo de Eusébio”
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JotaPê
Junho 23, 2023 at 6:20 pm
O homem que deu nome ao Benfica, lá fora. Quando o Benfica era um clube a sério e metia medo a toda a gente. Pena que tenha sido na época da televisão a preto e branco.
Com o passar dos anos, tornaram-no num clube banal, sem expressão fora de portas. E cá dentro tem anos…
Sérgio
Junho 26, 2023 at 9:56 am
Um verdadeiro Benfiquista sabe perfeitamente que o Benfica antes de Eusébio já tinha conquistado uma taça dos Campeões Europeus, um taça Latina, depois há aqueles avençados que tentam em vários sites por veneno, tentando disfarçadamente e de forma manhosa atirar o Benfica abaixo mas são logo apanhados…
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